domingo, 21 de junho de 2009

" A gente cantamos errado?"



O cancioneiro popular está repleto de casos em que o padrão da língua foi subvertido.Muitos assaltaram a gramática, como entoam Lulu Santos e Herbert Viana, de propósito. Outros buscam aproximar-se do coloquial, e com isso privilegiam variantes outras que não a língua culta.
Há, porém, um repertório de canções brasileiras em que o tropeço de português, involuntário ou deliberado, é tão integrado à lógica interna da composição que, se corrigido, a música sofreria algum tipo de perda.
O compositor Luiz Tatit, que é professor titular do departamento de Linguística da USP, observa que a intenção das letras nas canções é retratar falas e não gramáticas normativas, e as exigências da composição tomam o pimeiro plano.
Existem fatores do próprio processo de criação que não raro "pedem" desvios da norma culta, como a tentativa de encontrar uma rima. É a hipótese plausível , por exemplo, para a clássica marchinha Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Roberti, em que o apelo sonoro fala mais alto que a conjugação verbal tida como correta.
"Se você fosse sincera/Ô , ô, ô Aurora/ Veja só que bom que era/ Ô, ô, ô, Aurora."
Seria difícil imaginar, num salão de carnaval, alguém cantando: "Se você fosse sincera/ Ô, ô, ô, Aurora/ Veja só que bom que seria."
Um dos desafios de um compositor é passar sua mensagem nos limites da métrica, fazer com que as palavras caibam na melodia. Isso, por vezes, induz o autor a dilatar, de forma deliberada, os recursos da língua, sob o salvo-conduto da licença poética. Segundo Luiz Tatit, este tipo de recurso, que o letrista usa, serve para que caiba na melodia o que ele quer. Mudava-se um pouco a prosódia da palavra ou a palavra aparecia sem a concordância devida. Esses recursos são habituais, mas hoje em dia, se faz menos.
Por vezes, a supressão da norma é o que fortalece a ideia a ser comunicada. O rock A gente somos inútil, sucesso do Ultraje a Rigor na década de 80, é um exemplo. Ao mandar a regência e a concordância às favas, o autor Roger Moreira encontrou uma maneira debochada de enfatizar a ideia de um país acostumado a conviver com a precariedade e a ineficiência em vários setores.
"A gente não sabemos escolher presidente/ a gente não sabemos tomar conta da gente/ a gente não sabemso nem escovar os dente/ tem gringo pensando que nós é indigente/Inútil/ A gente somos inútil."
Na ocasião em que a música foi composta, até nas atividades em que o país era associado à excelência, como o futebol, vivia-se um período de baixa, o hiato entre o tricampeonato de 1970 e o tetra que só viria em 1994. Uma frustração refletida em "A gente joga bola e não consegue ganhar/ Inútil."
Na música do Ultraje, assim como em Beija Eu, do Arnaldo Antunes, há apropriações do coloquialismo para criar uma forma na cançaõ, um recurso linguisticamente lúdico para criar um estilo , analisa Heron Coelho, diretor e roteirista teatral, com graduação e mestrado em Letras pela USP.
A sonoridade, o lirismo que tem em "beija eu" é muito maior do que "beije-me".
Conforme Heron, tudo é possível quando se trata de poesia e consequentemente, da canção popular.
A obra de Arnaldo Antunes, tem outros exemplos de construções que subverteram a regra culta em favorecimento da mensagem, como em Macha, Fêmeo, uma parceria com Paulo Tatit e Marcelo Fromer. A letra é elaborada a partir de uma intencional inversão do gênero das palavras relacionadas ao corpo: "Cérebra, caralha, baga, pescoça, prepúcia, ossa / Nádego, boceto, teto, coxo, vagino, cabeço, boco."
Uma leitura possível é que a letra se presta a questionar a fixidez das categorias masculino e feminino. Outro exemplo é Fora de Si, em que Antunes canta: "Eu fico louco/ Eu fico fora de si/ Eu fica assim/Eu fica fora de mim".
Pode-se inferir que a transgressão gramatical reflete propositadamente uma desordem psíquica ou uma confusão entre o sujeito e o outro, ou ainda um jogo de palavras que traz a noção de presença e ausência à tona. Ou isso,"tudo ao mesmo tempo agora".
Porém nem toda subversão normativa resulta de uma busca por estilo ou por alargar os limites estéticos. Muitas vezes, trata-se da expressão de um dado linguajar, de uma tradição oral , de um tipo de falante. Ou, como diz Heron, da circunstância em que o autor está inserido. Podemos citar como exemplos, Luiz Gonzaga, que canta "Assum preto veve sorto, mas num pode avuá", e Adoniran Barbosa, com "Nós fumo e não encontremo ninguém". Há uma circunstância que leva esse coloquialismo para a canção popular. São segmentos da sociedade que encontram no discurso musical um lugar de expressão. O que, do ponto de vista linguístico, não acarreta nenhum prejuízo. Na visão do professor titular de Língua Portuguesa da PUC-SP, Dino Preti, torna uma obra como a de Adoniran excelente, por retratar uma variante linguística ( a da cidade de São Paulo).
De acordo com Preti, os registros de falas de segmentos sociais mais fechados, de gírias e da linguagem característica são elementos que conferem à música um sabor local, típico dos grupos, como o dos imigrantes italianos retratados por Adoniran, que imprimiam suas marcas na capital paulista, sobretudo no Brás e no Bixiga.
A linguagem culta é a variante mais prestigiada na sociedade, a variante dos livros, da literatura e, de certa forma, a da escola, mas não quer dizer que seja a única que deva se considerar. Conforme o ambiente, o tipo de falante, a interação, a conversação, pode haver outras variantes perfeitamente reais e válidas. O indivíduo deve aprender na escola que há diversas variantes e essas variantes são adequadas a certas situações. O importante é saber quando usá-las, em que condições, em que situações de comunicação se usa uma variante ou outra.
Dino Preti enfatiza que toda a linguagem tem de comunicar. Não adianta falar na língua culta e não comunicar as suas ideias. Tatit segue o mesmo tom quando afirma que a língua é completamente livre para se usar como quiser, e a canção é umas das formas.
O universo da música popular brasileira parece pedir um tipo de apreciador que seja também bom entendendor. Por isso, o que vale mesmo é passar a mensagem com consciência da variante adequada.
Talvez o território livre da palavra cantada soubesse disso antes mesmo da linguística.

TRAÍDOS PELO OUVIDO OU TRADIÇÃO "VIRUDUM".

É a possibilidade de o significante soar mais alto que o significado.
Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum (eu mesma já cometi!).
O termo é exdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.
Hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs. O mais conhecido desses sites é o chamado Virundum (www.virundum.com).
No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba denominado: "um homem para chamar Dirceu".
Noite do prazer, música de Claúdio Zoli: "Na madrugada/ rolando um blues/tocando B. B. King sem parar", virou: "trocando de biquini sem parar".
Em Nossos pais, Belchior escreveu: "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum: "Mas é você que é mal passado e que não vê".
A música Alagados, dos Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados / Trenchtown/Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtown assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver da pé / Só não se sabe pé de quê?"
É o universo paralelo do virundum.

(Retirado da Revista Língua Portuguesa - 2008).

Nenhum comentário:

Postar um comentário