terça-feira, 23 de junho de 2009


A FATIA ESTRANGEIRA DO IDIOMA E OS FALARES POPULARES.

Há diferentes maneiras de encarar os estrangeirismos, da necessidade de proteção e da incorporação sem crítica à convivência irônica, mas pacífica.
Os empréstimos estrangeiros ameaçam a língua, porque podem descaracterizá-la, pensam os que temem a desagregação do idioma. Esse discurso da ameaça, da decadência, da corrupção, da desagregação não é novo, ele ocorreu em muitas épocas da nossa história.
Quais são as ameaças à língua, segundo esse discurso? São duas: de um lado, os falares populares e, de outro, os empréstimos estrangeiros.
Segundo os que temem a decadência do idioma, os falares ameaçam, porque neles, em primeiro lugar, não se observam as regras gramaticais que regem o chamado falar culto. Por exemplo, diz-se "eu amo ela" em lugar de "eu a amo"; "haviam muitas senhoras na sala" em vez de "havia muitas senhoras na sala; "a menina que os olhos dela são azuis esteve aqui hoje" ao invés de "a menina cujos olhos são azuis esteve aqui hoje"; "eu lhe adoro" por "eu a adoro"; "entre eu e ela não há mais nada" em lugar de "entre mim e ela não há mais nada"; "esse livro é pra mim ler" em vez de "esse livro é para eu ler". Em segundo lugar, nos falares populares, há do ponto de vista do discurso da corrupção, um emprego inadequado do léxico da língua. Por exemplo: vazar significa, entre outras coisas, "esgotar-se (um líquido) pouco a pouco", mas não "ir embora". Além disso, considera-se que hoje se empregam muitas palavras e expressões cruas, grosseiras e vulgares.
Os que temem a decadência do nosso idioma afirmam que os estrangeirismos, principalmente provenientes da língua inglesa, são desnecessários porque existem termos equivalentes em português. Os estrangeirismos não têm correspondentes perfeitos em português. Quando um estrangeirismo vem para a língua, ele entra no sistema lexical (o conjunto de palavras de um idioma) e inscreve-se numa rede de correlações de sentido que lhe dá um valor específico. Assim, "delivery" não é igual a "entrega em domicílio", pois aquela palavra é a entrega em domicílio daqueles produtos que, tradicionalmente, não eram entregues em casa, como por exemplo, comida pronta. "brother" não é irmão, mas "amigo"; "book", em português não traduz livro, mas é um álbum de fotografias que os modelos deixam nas agências.
Apesar do que dizem os que têm medo da decadência do idioma, é preciso dizer que o português vai muito bem, não está decaindo, não está ameaçado de desagregação nem está corrompendo-se. Por quê?
Uma língua viva não é homogênea nem estática. Ao contrário, ela varia de região para região, de uma faixa etária para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra. Por outro lado, a língua vai mudando ao longo do tempo. Dificilmente, um texto do século 13 será compreendido por um falante comum. A língua do séc.13 será diferente da do séc.21 e isso ocorre porque a comunidade linguística vai tendo novas necessidades de comunicação.
Não é verdade que os estrangeirismos vão descaracterizar a língua, porque eles não estão atingindo a sintaxe, a morfologia, a fonética da língua. Não alcançam sequer o chamado fundo léxico comum, que individualiza o idioma. Eles são algumas centenas de empréstimos em setores bem localizados, como na publicidade e na informática.

A língua é edificada por seus usuários, que buscam exprimir novas significações, que procuram expressar sua maneira particular de ver o mundo, que querem marcar sua identidade social e, por isso, erigem consensos e diferenças. A língua constrói-se entre duas forças distintas: manutenção e transgressão. A primeira tenta assegurar a intercompreensão; a segunda busca exprimir novas realidades e criar novas identidades. isso é o que torna a língua viva. Isso não quer dizer que tudo valha em termos de linguagem. No entanto, a questão do erro é um pouco mais complicada do que querem fazer crer os catastrofistas que acham que o português está em vias de descaracterizar-se ou mesmo de desaparecer.
Em 1998, o então senador pelo PSDB, Ronaldo Cunha Lima,proferiu um discurso contra os anglicismos na língua portuguesa:
" A invasão de termos estrangeiros tem sido tão intensa que ninguém estranharia se eu fizesse aqui o relato do meu cotidiano: fui ao freezer, abri uma coca diet, e saí cantarolando um jingle, enquanto ligava meu disc player para ouvir uma música new age.
Precisava de um relax. Meu check up indicava stress. Dei um time e fui ler um best-seller no living do meu flat. Desci ao playground; depois fui fazer o meu cooper. Na rua, vi novos outdoors e revi os velhos amigos do footing. Um deles comunicou-me a aquisição de uma nova maison, com quatro suítes e até convidou-me para o open house. Marcamos, inclusive, um happy hour. Tomaríamos um drink, um scotch, de preferência on the rocks. O barman, muito chic, perguntou-me se eu conhecia o novo point society da cidade: o Time Square, ali no Gilberto Salomão, que fica perto do Gaf, o La Basque e o Baby Beef, com serviço à la carte e self service. Preferi ir ao McDonald's, para um lunch: um hamburguer com milk shake. Dali, fui ao shopping center, onde vi lojas bem brasileiras, a começar pelas Lojas Americanas, seguidas por Cat Shoes, Company, Le Postiche, Lady, Lord, Le Mask, M. Officer, Truc's, Dimpus, Bob's, Ellus, Arby's, Levi's, Masson, Mainline, Buckman, Smuggler, Brummel, La Lente, Body for Sure, Mister Cat, Hugo Boss, Zoomp, Sport Center, Free Corner e Brooksfield. Sem muito money, comprei pouco: uma sweater para mim e um berloque para a minha esposa. Voltei para casa ou, aliás, para o flat, pensando no day after, o que fazer? Dei boa noite ao meu chofer, que, com muito fair play, respondeu-me: good night.
Senhoras e senhores, muito obrigado, ou, se preferirem, thank you very much!"

(Retirado da Revista Língua Portuguesa - 2008).

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