quarta-feira, 24 de junho de 2009

MARCAS DE BATISMO


O linguista José Luiz Fiorin diz que os antropônimos ( nomes próprios de pessoas) assumiram uma faceta própria num país de imigração como o Brasil. Aqui, afirma ele, "juntaram-se todos os acervos de nomes tradicionais de todos os povos que para cá vieram" ou aqui estavam. A coleção de nomes possíveis, diz Fiorin, ampliou-se muito, com tolerância maior a modismos e bizarrices. O Brasil, musical e criativo, também tem suas preferências não só simbólicas como sonoras. É provável que seja o caso dos pais, por exemplo, que, encantados com a plasticidade da marca ou as boas lembranças dos desenhos de Walt Disney, batizam seus filhos com a corruptela "Valdisnei".
É com espírito no mínimo tolerante e confiante na letra que o fenômeno se tornou comum nos cartórios brasileiros, não se sabe se por insistência dos pais ou por atropelo de algum escrivão animado. Alguns nomes chamam a atenção pelo inusitado da homenagem: Cheio Quispir, má pronúncia para Shakespeare. Izuperiu Joaquim Pereira, menção ao nome do autor de "O Pequeno Príncipe", Saint-Exupéry.
Há nomes próprios que professam as perspectivas de mundo dos pais; e em torno de convicçõesrealizam suas homenagens por meio dos filhos, com que se espera que estampem pela vida algo que o nome de origem possuía. Foi assim talvez que Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, remeteram o nome do filho do casal a uma entidade indígena. O nome completo foi Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Poronominare significava "o dono da terra e do céu".
"Nomes próprios pouco comuns" (Livraria São José, Rio de Janeiro, 1974) traz um catálogo de antropônimos para lá de idiossincráticos, colhidos em cartórios, principalmente nordestinos: Colapso Cardíaco da Silva, Céu Azul do Céu Poente, Crissopasso Compasso, Dezênio Fevereiro de Oitenta e Cinco, Cólica de Jesus.
Outros: Skylab, referência à primeira estação espacial, que caíra na Terra, em 1979. Alrirwerton Wescrelteniz Phissihoua, Tereza Guiomhes de La France Phissihoua,Maria Santíssima Morais Serafim, Silêncio Fernandes da Silva, Vassencrixton Melo Ferreira, Jadeu Gomes, Gema Pedrosa, Vagina da silva.
Se puder, muita gente escolhe outro nome para si. A lei o admite. Todo prenome pode ser mudado se resultar de evidente erro gráfico ou expuser a pessoa ao ridículo ou se a mudança simplesmente evitar maiores explicações a cada vez que se diz o nome, por exemplo, Janduir, Adjair ou Aryclenes cabem para homem ou para mulher?
Em geral, muda-se o nome porque nunca se gostou ou por algum interesse do mercado. Houve um tempo em que era frequente o uso de um nome artístico, para manter no anonimato a família original dos artistas, pois até meados do século 20 a profissão era malquista. Outro motivo era para dar a imponência que o nome original não tinha.
Alguns exemplos: Aryclenes Venâncio Duarte (Lima Duarte), Thomas Mapother (Tom Cruise), Arlete Montenegro (Fernanda Montenegro), Allen Konigsberg (Woody Allen), Reginald Kenneth Dwight (Elton John), Margaret Mary Emily Anne Hyra (Meg Ryan).
No gosto popular, houve a transformação do apelido em nome próprio: Lula (Luís Inácio Lula da Silva), Lampião, Corisco, Pelé, Tostão, Garrincha, Xuxa.
Sabemos que nomes de pessoas não traduzem conceitos e se um dia o traduziram(Helena , em grego, significava "tocha") deixam de fazê-lo ao serem adotados em batismos diversos. Eles traduzem conotações e a imagem que se deseja ter na comunidade, lembra Fiorin. De algum modo carregam a noção de poder, a ilusão de que podemos transmitir algo que está contido num nome a quem damos nome.
Por trás do mais singelo nome que legamos aos nossos filhos, em cada novo nome que assumimos já adultos, esta ilusão se instala e nos ampara.

(Retirado da Revista Língua Portuguesa- 2008).

terça-feira, 23 de junho de 2009


A FATIA ESTRANGEIRA DO IDIOMA E OS FALARES POPULARES.

Há diferentes maneiras de encarar os estrangeirismos, da necessidade de proteção e da incorporação sem crítica à convivência irônica, mas pacífica.
Os empréstimos estrangeiros ameaçam a língua, porque podem descaracterizá-la, pensam os que temem a desagregação do idioma. Esse discurso da ameaça, da decadência, da corrupção, da desagregação não é novo, ele ocorreu em muitas épocas da nossa história.
Quais são as ameaças à língua, segundo esse discurso? São duas: de um lado, os falares populares e, de outro, os empréstimos estrangeiros.
Segundo os que temem a decadência do idioma, os falares ameaçam, porque neles, em primeiro lugar, não se observam as regras gramaticais que regem o chamado falar culto. Por exemplo, diz-se "eu amo ela" em lugar de "eu a amo"; "haviam muitas senhoras na sala" em vez de "havia muitas senhoras na sala; "a menina que os olhos dela são azuis esteve aqui hoje" ao invés de "a menina cujos olhos são azuis esteve aqui hoje"; "eu lhe adoro" por "eu a adoro"; "entre eu e ela não há mais nada" em lugar de "entre mim e ela não há mais nada"; "esse livro é pra mim ler" em vez de "esse livro é para eu ler". Em segundo lugar, nos falares populares, há do ponto de vista do discurso da corrupção, um emprego inadequado do léxico da língua. Por exemplo: vazar significa, entre outras coisas, "esgotar-se (um líquido) pouco a pouco", mas não "ir embora". Além disso, considera-se que hoje se empregam muitas palavras e expressões cruas, grosseiras e vulgares.
Os que temem a decadência do nosso idioma afirmam que os estrangeirismos, principalmente provenientes da língua inglesa, são desnecessários porque existem termos equivalentes em português. Os estrangeirismos não têm correspondentes perfeitos em português. Quando um estrangeirismo vem para a língua, ele entra no sistema lexical (o conjunto de palavras de um idioma) e inscreve-se numa rede de correlações de sentido que lhe dá um valor específico. Assim, "delivery" não é igual a "entrega em domicílio", pois aquela palavra é a entrega em domicílio daqueles produtos que, tradicionalmente, não eram entregues em casa, como por exemplo, comida pronta. "brother" não é irmão, mas "amigo"; "book", em português não traduz livro, mas é um álbum de fotografias que os modelos deixam nas agências.
Apesar do que dizem os que têm medo da decadência do idioma, é preciso dizer que o português vai muito bem, não está decaindo, não está ameaçado de desagregação nem está corrompendo-se. Por quê?
Uma língua viva não é homogênea nem estática. Ao contrário, ela varia de região para região, de uma faixa etária para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra. Por outro lado, a língua vai mudando ao longo do tempo. Dificilmente, um texto do século 13 será compreendido por um falante comum. A língua do séc.13 será diferente da do séc.21 e isso ocorre porque a comunidade linguística vai tendo novas necessidades de comunicação.
Não é verdade que os estrangeirismos vão descaracterizar a língua, porque eles não estão atingindo a sintaxe, a morfologia, a fonética da língua. Não alcançam sequer o chamado fundo léxico comum, que individualiza o idioma. Eles são algumas centenas de empréstimos em setores bem localizados, como na publicidade e na informática.

A língua é edificada por seus usuários, que buscam exprimir novas significações, que procuram expressar sua maneira particular de ver o mundo, que querem marcar sua identidade social e, por isso, erigem consensos e diferenças. A língua constrói-se entre duas forças distintas: manutenção e transgressão. A primeira tenta assegurar a intercompreensão; a segunda busca exprimir novas realidades e criar novas identidades. isso é o que torna a língua viva. Isso não quer dizer que tudo valha em termos de linguagem. No entanto, a questão do erro é um pouco mais complicada do que querem fazer crer os catastrofistas que acham que o português está em vias de descaracterizar-se ou mesmo de desaparecer.
Em 1998, o então senador pelo PSDB, Ronaldo Cunha Lima,proferiu um discurso contra os anglicismos na língua portuguesa:
" A invasão de termos estrangeiros tem sido tão intensa que ninguém estranharia se eu fizesse aqui o relato do meu cotidiano: fui ao freezer, abri uma coca diet, e saí cantarolando um jingle, enquanto ligava meu disc player para ouvir uma música new age.
Precisava de um relax. Meu check up indicava stress. Dei um time e fui ler um best-seller no living do meu flat. Desci ao playground; depois fui fazer o meu cooper. Na rua, vi novos outdoors e revi os velhos amigos do footing. Um deles comunicou-me a aquisição de uma nova maison, com quatro suítes e até convidou-me para o open house. Marcamos, inclusive, um happy hour. Tomaríamos um drink, um scotch, de preferência on the rocks. O barman, muito chic, perguntou-me se eu conhecia o novo point society da cidade: o Time Square, ali no Gilberto Salomão, que fica perto do Gaf, o La Basque e o Baby Beef, com serviço à la carte e self service. Preferi ir ao McDonald's, para um lunch: um hamburguer com milk shake. Dali, fui ao shopping center, onde vi lojas bem brasileiras, a começar pelas Lojas Americanas, seguidas por Cat Shoes, Company, Le Postiche, Lady, Lord, Le Mask, M. Officer, Truc's, Dimpus, Bob's, Ellus, Arby's, Levi's, Masson, Mainline, Buckman, Smuggler, Brummel, La Lente, Body for Sure, Mister Cat, Hugo Boss, Zoomp, Sport Center, Free Corner e Brooksfield. Sem muito money, comprei pouco: uma sweater para mim e um berloque para a minha esposa. Voltei para casa ou, aliás, para o flat, pensando no day after, o que fazer? Dei boa noite ao meu chofer, que, com muito fair play, respondeu-me: good night.
Senhoras e senhores, muito obrigado, ou, se preferirem, thank you very much!"

(Retirado da Revista Língua Portuguesa - 2008).

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O CORPO QUE VIROU PAPEL


A tatuagem no Brasil parece ter surgido como uma resposta à adversidade social, que teria propagado a prática desde que D. João VI abriu nossos portos ao comércio estrangeiro, facilitando o contato de marinheiros com a população litorânea. A professora Célia Maria Antonacci Ramos, da Universidade do estado de Santa Catarina, afirma que a tatuagem começou por aqui praticada "nas horas de inatividade dos habitantes das ruas periféricas", em geral, de nossas cidades portuárias. Nesse caso, o corpo é, para quem não tem posse ou bem capitalista, o único suporte da escrita.
Segundo Célia Antonacci, a tatuagem não foi sempre praticada com o propósito estético, mas também discursivo. A tatuagem é ela mesma um procedimento de escrita no corpo humano. Talvez seja o procedimento de escrita mais antigo do homem.
A modalidade verbal, porém, é praticamente restrita. O idioma do corpo é predominantemente a imagem. Por isso, a recente incidência da tatuagem verbal virou razão de espanto. É a era da morfologia corporal, que vê no corpo um signo, uma convenção arbitrária.
O tatuador Tino diz que, no Brasil, a prática só virou rotina nestes cinco anos.
A tatuagem comunicaria hoje um sentido independente de cada palavra ou imagem particular. O tatuado sugere que é gestor de si. As trocas que faz não teriam relação direta com o sistema capitalista, mas com a cultura e a comunicação - afirma Célia.
As mensagens no corpo são símbolos de compromisso, marca de identidade, forma de protesto. O espectro de possibilidades verbais para as tatuagens responde por um número limitado de tipos, que são distintos dos modelos feitos só com desenhos.
Podemos classificar as mensagens verbais como: declarações de amor (mensagens "cifradas", mesmo em idiomas estrangeiros, para a pessoa amada), homenagem com os nomes dos entes queridos, declaração de fé ou busca de proteção divina, através de versículos e salmos, protesto e mídia (corpo como "lugar" próprio, a causar impacto comparável a suportes midiáticos).
Há a sedução pela palavra tatuada. Um alvorecer para a palavra à flor da pele.

Na imagem acima, temos uma frase tatuada nas costas, uma frase"filosófica".
Nela há um desvio da norma padrão da língua: "As grades prende nossos corpos mas não o nossos pensamento..."
De acordo com as regras gramaticais da gramática normativa, a correta frase seria tatuada assim: "As grades prendem nossos corpos , mas não os nossos pensamentos..."
(A oração coordenada assindética -" as grades prendem nossos corpos", seria separada por vírgula da oração coordenada sindética adversativa - "mas não os nossos pensamentos").

Quer saber mais sobre o assunto? Leia "Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpo", de Leusa Araújo e assista ao filme "O Livro de Cabeceira" (1996), de Peter Greenaway.

(Retirado da Revista Língua Portuguesa - 2008).

NOTÍCIA EXTRAORDINÁRIA
A atriz pornô russa Anna Morgan assinou um contrato com o site MyMMOShop.com, especializado na venda de games online para múltiplos jogadores (MMO, na sigla em inglês) como o famoso World of Warcraft (WoW), para tatuar a marca da empresa nos seios. De acordo com o site "Russia Today", a moça receberá US$ 500 mil pela tatuagem-propaganda composta de logo e endereço do site e deverá ostentá-la por um período de dois anos.
Esse é um exemplo do corpo usado como mídia.

(www.globo.com.br).




(www.globo.com.br)

domingo, 21 de junho de 2009

" A gente cantamos errado?"



O cancioneiro popular está repleto de casos em que o padrão da língua foi subvertido.Muitos assaltaram a gramática, como entoam Lulu Santos e Herbert Viana, de propósito. Outros buscam aproximar-se do coloquial, e com isso privilegiam variantes outras que não a língua culta.
Há, porém, um repertório de canções brasileiras em que o tropeço de português, involuntário ou deliberado, é tão integrado à lógica interna da composição que, se corrigido, a música sofreria algum tipo de perda.
O compositor Luiz Tatit, que é professor titular do departamento de Linguística da USP, observa que a intenção das letras nas canções é retratar falas e não gramáticas normativas, e as exigências da composição tomam o pimeiro plano.
Existem fatores do próprio processo de criação que não raro "pedem" desvios da norma culta, como a tentativa de encontrar uma rima. É a hipótese plausível , por exemplo, para a clássica marchinha Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Roberti, em que o apelo sonoro fala mais alto que a conjugação verbal tida como correta.
"Se você fosse sincera/Ô , ô, ô Aurora/ Veja só que bom que era/ Ô, ô, ô, Aurora."
Seria difícil imaginar, num salão de carnaval, alguém cantando: "Se você fosse sincera/ Ô, ô, ô, Aurora/ Veja só que bom que seria."
Um dos desafios de um compositor é passar sua mensagem nos limites da métrica, fazer com que as palavras caibam na melodia. Isso, por vezes, induz o autor a dilatar, de forma deliberada, os recursos da língua, sob o salvo-conduto da licença poética. Segundo Luiz Tatit, este tipo de recurso, que o letrista usa, serve para que caiba na melodia o que ele quer. Mudava-se um pouco a prosódia da palavra ou a palavra aparecia sem a concordância devida. Esses recursos são habituais, mas hoje em dia, se faz menos.
Por vezes, a supressão da norma é o que fortalece a ideia a ser comunicada. O rock A gente somos inútil, sucesso do Ultraje a Rigor na década de 80, é um exemplo. Ao mandar a regência e a concordância às favas, o autor Roger Moreira encontrou uma maneira debochada de enfatizar a ideia de um país acostumado a conviver com a precariedade e a ineficiência em vários setores.
"A gente não sabemos escolher presidente/ a gente não sabemos tomar conta da gente/ a gente não sabemso nem escovar os dente/ tem gringo pensando que nós é indigente/Inútil/ A gente somos inútil."
Na ocasião em que a música foi composta, até nas atividades em que o país era associado à excelência, como o futebol, vivia-se um período de baixa, o hiato entre o tricampeonato de 1970 e o tetra que só viria em 1994. Uma frustração refletida em "A gente joga bola e não consegue ganhar/ Inútil."
Na música do Ultraje, assim como em Beija Eu, do Arnaldo Antunes, há apropriações do coloquialismo para criar uma forma na cançaõ, um recurso linguisticamente lúdico para criar um estilo , analisa Heron Coelho, diretor e roteirista teatral, com graduação e mestrado em Letras pela USP.
A sonoridade, o lirismo que tem em "beija eu" é muito maior do que "beije-me".
Conforme Heron, tudo é possível quando se trata de poesia e consequentemente, da canção popular.
A obra de Arnaldo Antunes, tem outros exemplos de construções que subverteram a regra culta em favorecimento da mensagem, como em Macha, Fêmeo, uma parceria com Paulo Tatit e Marcelo Fromer. A letra é elaborada a partir de uma intencional inversão do gênero das palavras relacionadas ao corpo: "Cérebra, caralha, baga, pescoça, prepúcia, ossa / Nádego, boceto, teto, coxo, vagino, cabeço, boco."
Uma leitura possível é que a letra se presta a questionar a fixidez das categorias masculino e feminino. Outro exemplo é Fora de Si, em que Antunes canta: "Eu fico louco/ Eu fico fora de si/ Eu fica assim/Eu fica fora de mim".
Pode-se inferir que a transgressão gramatical reflete propositadamente uma desordem psíquica ou uma confusão entre o sujeito e o outro, ou ainda um jogo de palavras que traz a noção de presença e ausência à tona. Ou isso,"tudo ao mesmo tempo agora".
Porém nem toda subversão normativa resulta de uma busca por estilo ou por alargar os limites estéticos. Muitas vezes, trata-se da expressão de um dado linguajar, de uma tradição oral , de um tipo de falante. Ou, como diz Heron, da circunstância em que o autor está inserido. Podemos citar como exemplos, Luiz Gonzaga, que canta "Assum preto veve sorto, mas num pode avuá", e Adoniran Barbosa, com "Nós fumo e não encontremo ninguém". Há uma circunstância que leva esse coloquialismo para a canção popular. São segmentos da sociedade que encontram no discurso musical um lugar de expressão. O que, do ponto de vista linguístico, não acarreta nenhum prejuízo. Na visão do professor titular de Língua Portuguesa da PUC-SP, Dino Preti, torna uma obra como a de Adoniran excelente, por retratar uma variante linguística ( a da cidade de São Paulo).
De acordo com Preti, os registros de falas de segmentos sociais mais fechados, de gírias e da linguagem característica são elementos que conferem à música um sabor local, típico dos grupos, como o dos imigrantes italianos retratados por Adoniran, que imprimiam suas marcas na capital paulista, sobretudo no Brás e no Bixiga.
A linguagem culta é a variante mais prestigiada na sociedade, a variante dos livros, da literatura e, de certa forma, a da escola, mas não quer dizer que seja a única que deva se considerar. Conforme o ambiente, o tipo de falante, a interação, a conversação, pode haver outras variantes perfeitamente reais e válidas. O indivíduo deve aprender na escola que há diversas variantes e essas variantes são adequadas a certas situações. O importante é saber quando usá-las, em que condições, em que situações de comunicação se usa uma variante ou outra.
Dino Preti enfatiza que toda a linguagem tem de comunicar. Não adianta falar na língua culta e não comunicar as suas ideias. Tatit segue o mesmo tom quando afirma que a língua é completamente livre para se usar como quiser, e a canção é umas das formas.
O universo da música popular brasileira parece pedir um tipo de apreciador que seja também bom entendendor. Por isso, o que vale mesmo é passar a mensagem com consciência da variante adequada.
Talvez o território livre da palavra cantada soubesse disso antes mesmo da linguística.

TRAÍDOS PELO OUVIDO OU TRADIÇÃO "VIRUDUM".

É a possibilidade de o significante soar mais alto que o significado.
Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum (eu mesma já cometi!).
O termo é exdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.
Hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs. O mais conhecido desses sites é o chamado Virundum (www.virundum.com).
No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba denominado: "um homem para chamar Dirceu".
Noite do prazer, música de Claúdio Zoli: "Na madrugada/ rolando um blues/tocando B. B. King sem parar", virou: "trocando de biquini sem parar".
Em Nossos pais, Belchior escreveu: "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum: "Mas é você que é mal passado e que não vê".
A música Alagados, dos Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados / Trenchtown/Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtown assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver da pé / Só não se sabe pé de quê?"
É o universo paralelo do virundum.

(Retirado da Revista Língua Portuguesa - 2008).